24.7.06

"Este Inferno de Amar" de Almeida Garrett

Este inferno de amar - como eu amo!
-Quem mo pôs n'alma... quem foi?
Esta chama que alenta e consome,
Que é a vida - e que a vida destrói
- Como é que se veio a atear,
Quando - ai quando se há de ela apagar?

Eu não sei, não me lembra: o passado,
A outra vida que dantes vivi
Era um sonho talvez... - foi um sonho
- Em que paz tão serana dormi!
Oh! que doce era aquele sonhar...
Quem me veio, ai de mim! desperatar?

Só me lembra que um dia formoso
Eu passei... dava o Sol tanta luz!
E os meus olhos, que vagos giravam,
Em seus olhos ardentes os pus.
Que fez ela? eu que fiz? - Não no sei;
Mas nessa hora a viver comecei...

Almeida Garrett

15.7.06

"Alegoria da Caverna" de Nuno Judice

“Todos os cadernos servem para que neles se escreva qualquer coisa, como um poema. E é preciso que um caderno esteja aberto para que a página obrigue o verso a avançar até ao fim da linha, passando a outro verso, até completar a estrofe. Um poema, então, nasce do vazio que se faz quando se abre um caderno. Não tem no seu
[princípio qualquer outra razão; a não ser que a tua imagem se tenha metido no meio, entre a memória e o caderno, deixando na página uma sombra que tento apagar com o poema, como se ele a pudesse absorver, transformá-Ia em versos, estendê-Ia até ao fim da estrofe.

Um poema precisa de viver. E, para isso, não pode
estar à sombra de qualquer coisa, mesmo que essa sombra nasça da tua imagem. Tenho de apagar um deles: poema ou imagem; e
deixar que o caderno se feche quando a decisão ficar tomada, para que
[dentro dele fique o registo dessa noite em que foi preciso decidir entre a memória e a palavra. No entanto, ao acabar o poema, esquecendo-me por
[instantes do seu princípio, tudo volta ao mesmo: e tu estás comigo, isto é, a tua imagem desce-me da memória para o caderno, alastrando pela página até ao fim do poema.

É como se o poema existisse por essa única razão: fixar a tua sombra.”

Nuno Judice